quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Uma aula de cinema


O filme começa. Numa praça comum, senhoras de idade passeiam com seus cachorros, pessoas passam apressadas, o vendedor de jornais atende a mais um freguês, pessoas embarcam e desembarcam em uma estação de metrô, um jovem sai da estação, para em frente a um senhor mais velho, os dois se olham e o jovem dá um tapa nele. De repente, a ordem: Corta! As pessoas param, olham para o cara sentado em uma cadeira e começam a voltar para os lugares onde estavam no início da cena. Assim começa A Noite Americana, do - pra definir resumidamente em uma só palavra - genial François Truffaut.

Metalinguagem pura, o filme fala sobre as filmagens de um outro filme, o fictício "A chegada de Pâmela". Jacqueline Bisset encarna as personagens Julie/Pamela, sendo Julie Baker uma conhecida atriz que interpreta a jovem que viaja para conhecer os pais de seu noivo, e ao conhecer o futuro sogro, os dois se apaixonam. E o que isso tem de genial? Já no título (em inglês Day for Night e em francês La Nuit Américaine) fica evidenciada a artificialidade da história, já que esses são termos usados para designar o filtro especial que permite aos cineastas filmar cenas noturnas durante o dia. É o tipo de piada interna que nós, meros mortais que desconhecemos termos cinematográficos, não sabemos o porquê daquilo, mas quando entendemos o significado soltamos um sonoro ahhh tá...

Além disso, o filme é recheado de 'pegadinhas' que pegam desprevenidos os mais incautos. Uma delas é o fato de que o próprio Truffaut interpreta o diretor do filme, Ferrand. E não é só ele: Jean-François Stevenin, assistente de direção que trabalhou com ele em diversos outros filmes, também interpreta 'a si próprio', assim como outros colaboradores. Outra curiosidade é o fato de que parte das locações em que o filme foi rodado, em Nice, eram cenários abandonados de um outro filme, que o estúdio não mandou demolir simplesmente porque sairia mais caro.

E o que vemos é exatamente um raio-x do cinema, com cenas onde, por exemplo, é possível ver os trilhos por onde passeiam as câmeras pra fazer o travelling, armações de madeira segurando fundos falsos, mangueirinhas de sprinklers fazendo chuva falsa sobre as janelas, etc. Mas muito mais do que isso, o filme por detrás do filme revela um universo infinitamente mais amplo e interessante, com todas as mazelas que só um apaixonado por aquilo que faz pode aguentar. Problemas pessoais dos atores, como a atriz que bebe demais e esquece as falas, ou perder alguém importante da produção em plena filmagem, o estúdio pressionando para que tudo seja concluído o quanto antes, as verbas diminuídas que obrigam a apertar os cintos, problemas na adaptação do roteiro, tudo ao mesmo tempo, nu e cru - mas ainda mágico, como só o cinema consegue ser.

E sem querer, aos poucos o espectador descobre na tela uma aula de cinema, além de uma declaração de amor à sétima arte por parte do próprio Truffaut. Em uma das cenas, Severine (Valentina Cortese) tem que gravar uma cena importante, mas não consegue lembrar as falas. A cena é repetida várias vezes, e podemos acompanhá-la de diversos ângulos, mostrando as diversas perspectivas diferentes que um diretor pode escolher. Em outra, Ferrand liga para o maestro responsável pela composição da trilha sonora, que lhe mostra o trecho de uma canção. Enquanto ela é exibida, ele abre um pacote com diversos livros e os espalha pela mesa. Ilustrando as capas, e ao som da música romântica, mestres do cinema recebem a homenagem, como Luis Buñuel, Jean-Luc Godard, Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman, entre outros.

Por essas e outras, com tantas referências e detalhes a serem explorados, pra definir resumidamente em uma só palavra, basta dizer mais uma vez que Truffaut é genial.

A Noite Americana

(La Nuit Américaine)
Gênero: Drama/Comédia
Direção: François Truffaut
Elenco: François Truffaut, Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Léaud, Valentina Cortese, Dani, Alexandra Stewart, Jean Champion, Jean-Pierre Aumont

França/Itália - 115 min. - livre

Nenhum comentário: